Olha... mesmo que eu quisesse açoitar o livro de John Ajvide Lindqvist; mesmo que eu tivesse achado a história uma porcaria, pura perda de tempo; mesmo que eu desejasse pegar uma tesoura e picar a obra desse escritor para que outros leitores não perdessem o seu precioso tempo; jamais, em hipótese alguma, eu poderia fazer tudo isso. Sabem por que? Porque “Deixa Ela Entrar” foi o meu confindente, companheiro e amigo solidário nas madrugadas solitárias que passei com o Tourão no hospital, em sua luta pela vida. Acredito que sem um livro – por pior que seja – seria difícil suportar tantas cenas ‘down’ que presenciei. Todas essas cenas restritas à perdas, perdas e mais perdas. Mães perdendo os filhos; esposas perdendo os esposos; filhos perdendo os pais. Caraca! Parece que o anjo da morte resolveu visitar todas as almas, cujos nomes estavam escritos no ‘livro do destino’, naquela fatídica noite em que eu estava por lá. Rapaz; como dói ver tudo isso! Não que eu seja um molenga, pelo contrário, já vi coisas de arrepiar em minha profissão, mas experimenta ouvir e ‘ver’ o choro agoniado de uma mãe que perde o seu filho único. Cara, é fod...!
E eram nessas horas que eu ‘grudava’ no livro de Lindqvist e mergulhava de corpo e alma na história... como se eu fosse um observador na pequena cidade sueca de Blackeberg, onde se desenrola a trama de Oskar e Eli.
Mas podem ficar tranqüilos porque eu não vou criticar a obra, afinal de contas ela é muito boa; boa não... brilhante. Talvez, depois do antológico “Drácula” de Bram Stoker; o melhor romance sobre vampiros.
Ao contrário de Vlad Tepes, ou seja, do nosso lendário Conde Drácula; o personagem criado por Lindqvist: a vampira Eli, é completamente ambígua, despertando a cada página, a curiosidade do leitor. Eu ficava ansioso para saber quais seriam as suas atitudes ao longo história. Tipo se ela iria fazer algo bom ou maquiavélico, já que ao mesmo tempo em que Eli amava, minutos depois, ela matava ou então depois de um abraço inocente de criança carente, vinha a catracada na veia jugular da vítima. Já o conde Vlad idealizado por Stoker é a caricatura do próprio mal. Por isso, desde a sua primeira aparição nas páginas de ‘Drácula’, o leitor já percebe que o sanguessuga vai aprontar poucas e boas, pois vive no mal, respira o mal e ama o mal. Entendemos isso, desde o momento em que Drácula prende Jonathan Hark em seu castelo com a desculpa de o tê-lo como um hóspede especial. Com o virar das páginas, essa maldade vai crescendo, crescendo até atingir o auge.
Já com Eli, de “Deixa Ela Entrar”, o espírito do mal caricato cede lugar para a ambigüidade. A vampira criada por Lindqvist, mostra inúmeras facetas: de criança inocente e abandonada à mercê de um pedófilo, à de vampira maléfica, pronta para devorar as suas vítimas. Mas se engana aqueles que pensam que Eli faz dessa ambigüidade um jogo de cinismo. Nada disso. O personagem não é cínico, pelo contrário; Eli é simplesmente o que é. Um ser humano dócil e amigo até em baixo d’ água – Oskar que o diga – mas quando ele precisa de sangue para continuar viva: que se dane o mundo; “quem estiver na minha frente eu traço”. Então Eli se transforma no vampiro letal como fica evidente em vários trechos do livro, alguns com toques de humor negro, apesar da violência, como é o caso de uma inocente velhinha que por causa de sua grave doença é obrigada a tomar doses altíssimas de morfina. Ela acolhe Eli com todo o carinho em sua casa, ma a vampirona não quer saber de amor e atenção; ela quer sangue, pois está faminta. Então ataca a bondosa anciã e se enfastia, sem saber que o “produto” está infestado de morfina. O resultado desse ataque vampírico inusitado chega a ser cômico, isto é, se deixarmos de lado a violência com que o autor descreve o ataque.
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O autor sueco John Ajvide Lindqvist |
Eli também é mesquinha ao extremo com Hakan, o homem que vive com ela e que mantém um relacionamento misterioso com o vampiro. A sanguessuga obriga o sujeito a sair em busca de vítimas que lhe possam fornecer sangue fresco para a sua sobrevivência. Chantagens e ameaças “comem solto” e Hakan sempre acaba cedendo. Em sua lista de vítimas cabe de tudo; desde crianças, mulheres e adultos.
Mas todo esse mau caráter recheado com muita violência desaparece da personalidade de Eli quando ela está ao lado de Oskar. Nesses momentos, a vampira mostra o outro lado de sua personalidade: o lado bom. Acredito que isso faz do personagem de Lindqvist, um dos mais ambíguos da literatura mundial. E foram essas nuances que me atrairam em Eli, deixando a leitura cada vez mais interessante. Quando começava a ficar com raiva do personagem, lá vinha a menina sanguessuga com um gesto legal que a fazia subir em meu conceito.
Outro ponto positivo do livro é o enredo multilateral, onde outros personagens passam a ter a mesma importância dos protagonistas, tornando a história bem mais interessante e menos cansativa. O autor sueco optou por não transformar Eli e Oskar nos personagens centrais de sua história. Há outros, também importantes, cuja participação vai crescendo ao longo da narrativa. Isso ocorre, por exemplo, com a turma do boteco, como aprendi a chamá-los. O drama de Lacke, Virginia, Morgan, Larry, Karlsson e Gosta é tão essencial para o sucesso do roteiro como o drama vivido por Eli e Oscar. A transformação de um deles em vamnpiro é uma verdadeira obra prima da literatura. Lindqvist descreve em detalhes como o organismo de um ser humano normal se comporta ao ir se transformando aos poucos em um sistema vampírico. Sei que embolei o “meio de campo”, mas não encontro palavras melhores para descrever a incerteza, dúvida e espanto de um dos integrantes da turma do boteco, ao ver o seu corpo sofrer progressivamente estranhas mudanças, as quais acredita ser sintomas de uma doença comum. Então quando descobre que, na verdade, ele (a) está se transformando num vampiro. Buuummm! A coisa pega! O coitado (a) chega perto da piração.
Há o drama de Gosta que é viciado em gatos, inclusive ele e os seus felinos são responsáveis por um trecho antológico do romance, quando o ‘bando’ de animais resolve atacar um vampiro. Cara! Palavra que fiquei com dó do sanguessuga! Lindqvist também descreve minuciosamente esse momento. “Ele tentou bater nos bichos, ouviu ossos se quebrando, mas, quando um caía, vinha outro, pois os gatos trepavam uns nos outros com sofreguidão cravando as garras em sua carne”. Na minha opinião um dos melhores momentos do romance.
O leitor ainda irá conhecer o revoltado Tommy, único amigo de Oskar, cuja mãe se apaixona por um policial que se transforma no pesadelo do enteado. Em sua revolta, Tommy procura encontrar meios de criar situações constrangedoras para o futuro padrasto. Prestem atenção no que ele apronta durante um culto numa igreja evangélica. Outra cena marcante.
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Que sono........Zzzzzzzzzzz... Isso que dá escrever posts de madrugada |
Sei que muitos de vocês que lêem esse post, agora, estão curiosos para saber se livro e filme são semelhantes. Eu respondo na lata: Não. A obra escrita e a obra cinematográfica são como água e óleo: diferentes ao extremo. Muitas cenas chocantes, incluindo algumas de pedofilia foram cortadas do roteiro dos dois filmes: sueco, de 2008 e o remake americano, de 2010. Alguns trechos do livro envolvendo o pedófilo Hakan são asquerosos. E é evidente que essas passagens da obra escrita foram completamente mutiladas da versão nas telonas. O Hakan dos cinemas chega a ser a madre Tereza de Calcutá se comparado com o seu sósia dos livros.
Na obra de Lindqvist algumas pessoas que foram atacadas por Eli chegam a se transformar em vampiros dando um trabalho danado para a polícia; o que já não acontece no filme.
Enquanto os dois filmes mantém o foco somente em Eli e Oskar, o livro explora – à exaustão – o drama de outros personagens.
O problema do bullying sofrido por Oskar na escola é bem mais aprofundado no livro. No início chegamos a ficar com raiva do personagem pela sua passividade perante os seus agressores. Ele não é humilhado... ele é – me perdoem os termos chulos – cagado pelos seus ‘algozes’. Só faltam dizer: “- Vai ô pirralho! Abre a boca para que nós possamos cagar nela!” E o pior é que o pobre infeliz obedece. Quando, a tropa de inimigos de Oskar pede para que ele imite um porco e o garoto faz o que eles determinam... mêo... dá vontade de entrar na história e dar uns tabefes em Oskar pela sua covardia.
E quanto a Eli... Bem... perceberam a minha indecisão, toda vez que tinha de escrever sobre esse personagem? Dêem uma espiadinha ao longo do post. Algumas vezes me referia à Eli no feminino e em outras, no masculino. Assim, quando percebi, já tinha feito um verdadeiro samba do crioulo doido no texto. Fico imaginando o ataque de nervos de professores de língua portuguesa ou então de leitores mais detalhistas ao verem essa confusão de palavras. Mas mesmo assim, optei por deixar o texto sem nenhuma correção nessa parte, porque Eli é... deixa prá lá; melhor você ler o livro. O que posso dizer sem o risco de bancar o chato que publica spoilers é que na obra literária, temos a revelação do significado do nome Eli. E de quebra um relato completo da origem do personagem, inclusive como ‘ele’ se transformou em vampira. Êta, olha a confusão novamente aí. Já o filme, oculta essa parte.
Poderia passar muito mais tempo revelando outras diferenças entre livro e filme, mas paro por aqui, melhor você descobrir por si mesmo. Aconselho ler o livro primeiramente, depois veja o filme.
E quer saber de uma coisa? Cara, estou morrrreeendo de sono. Zzzzzzzzzz.
PS: Acordando do cochilo em frente ao teclado do computer, somente para lembrar de um detalhe importante: o livro foi lançado no Brasil após oito anos!! Deus abençoe a Globo Livros! Voltando aos braços de Morfeu... Zzzzzzzz...